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Leão assassino

Essa semana um professor me disse que nós, biólogos, temos o desagradável hábito de compararmo-nos aos animais de nosso estudo, justificando comportamentos, morfologia, anatomia ou qualquer que seja o assunto da conversa através de linhas evolutivas ou comportamentos semelhantes em outras famílias do reino animal. E, de fato, temos esse hábito que muitas vezes é puramente empírico e sem nenhuma base científica.

 

Contudo, apesar de em alguns casos esse tipo de comparação estar equívocado, mais equívoco é o conceito de não comparação que esse professor expressou em aula. Conceito esse que é comum e recorrente em boa parte da população e, infelizmente, em alguns de meus colegas biólogos.

 

Veja, essa linha de raciocínio que diz que não devemos nos comparar com outras espécies do reino animal parte da premissa de que o homem é superior e singular. Nossos comportamentos, hierarquia social, nossa distinta capacidade de manipular objetos, nosso raciocínio matemático, linguagem escrita, comunicação por dialeto... todos nós já ouvimos e internalizamos quão superior e incrível o ser humano é.

 

Mas por favor, biólogos, somos mais do que isso! Estudamos de mais para cair senso comum. *"Different, but not less" é uma frase inovadora perpetuada no mundo por uma referência nos avanços no bem-estar animal e no conhecimento de autismo, Temple Grandim, e, apesar de se referir as pessoas com autismo, acredito que essa citação exemplifica muito bem a relação entre os seres humanos e os outros animais.

 

Diferente, mas não menos. Ou, se levarmos em conta o enorme ego humano: diferente, mas não mais. Quantas vezes na história o ser humano cometeu atrocidades, genocídios e barbaridades sem fundamento por que um grupo se achava tão perfeitamente superior? Devemos aprender com a nossa história!

 

O ser humano se acha tão incrivelmente superior... e ainda assim um vírus, que muitos não consideram ser vivo, consegue driblar nosso sistema imune e nos manipular, obrigando-nos a fazer coisas pertinentes ao seu hábito reprodutivo (porque ninguém consegue não tossir estando resfriado).

 

Portanto, não. O ser humano não é superior. E exatamente por isso não é um equívoco nos compararmos aos outros animais: quando descartamos as similaridades e sinapomorfias, estamos não só atestando superioridade e arrogância, como também perdendo uma oportunidade de aprendizado e conhecimento próprio. Errado seria usarmos dois pesos e duas medidas. Vou empregar o mesmo exemplo que o professor usou em sala de aula para ilustrar meu argumento: leão assassino.

 

Neste caso, faço minhas as palavras do meu professor e concordo com a brutal ignorância de titular um exímio caçador como "assassino". Mas não concordo quanto ao lugar em que se encontra o erro conceitual que resulta nesse absurdo.

 

Ao contrário do que foi dito em sala, não é porque nos comparamos com tal animal que esse truculento conceito surgiu, mas sim por que NÃO nos comparamos. Veja, ao dizer que o leão é um assassino porque mata suas presas, estamos assumindo que todo ser carnívoro, inclusive a espécie humana, é, também, assassina. Mas não é assim que pensamos. Descartamos todos os animais que matamos diariamente pelo simples fato que a maioria de nós não o fez com as próprias mãos. Isso é uma ridícula presunção. E se somarmos ainda os animais que morrem em decorrência do decoro do

homem e de desastres ambientais, como nós ficamos? Há palavra mais pesada que "assassino" para descrevermos essa chacina causada por humanos?

 

Portanto, volto a repetir: chega de inflar o ego e enumerar motivos pelos quais o ser humano é tão indiscutivelmente superior (pelos nossos parâmetros, claro). Chega de desrespeitar, inferiorizar ou descartar qualquer um (no caso, me refiro a outros seres vivos no geral, mas isso acontece inclusive entre diferentes grupos de nossa própria espécie) que não se enquadre perfeitamente em nossos parâmetros. Chega de acharmo-nos superiores de mais para sermos julgados por nossos próprios conceitos.

 

 

 

*"Different, but not less" é um termo inglês que significa "diferente, porém não menos".

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