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Dia de despedir

Uma vez eu escrevi: "tudo muda, e mudar às vezes significa ir-se; para além da compreensão, para além da extensão de um braço, do alcanço de um abraço, (...) as vezes os amigos precisam mudar de nós, e espaço, distância e até esquecimento são importantes, não devemos nos amarrar, nem amarrar aqueles que amamos. E está tudo bem, coisas e pessoas precisam ir, nada é para sempre, nada deve ser para sempre, "que seja eterno enquanto dure"." 

 

Esse texto tinha vários tons, uma avalanche de sentimentos que nem eu entendo direito. Mas esse trecho é diferente. Nele há uma certa tristeza de despedida, uma passividade provinda de impotência. Nele há aceitação.  

 

As vezes eu o leio e sorrio. Passividade pode ser um bom sentimento, aceitar o que não se pode mudar é uma resposta madura que facilita a passagem pelos atritos da vida. Outras vezes eu o leio e lágrimas escorrem pelos meus olhos. São olhos cansados de se fazerem de fortes, olhos medrosos, temerosos de outro adeus. Nesses dias eu invejo a pessoa que eu fui quando escrevi o texto, a menina que sofreu em silêncio, a mulher que disse adeus com ternura. Algumas vezes, ainda, eu o leio e raiva invade meu coração. Como pude eu ser tão passiva? Como pude não lutar até o último instante? Como pude aceitar o inevitável? Fraca! Medrosa! Nesses dias minhas bochechas queimam de vergonha e desgosto, mesmo sabendo que de nada teria adiantado tanta briga vã, porque bem lá no fundo eu sei que não importa o resultado, o que importa é ter dado tudo de si. Já outras vezes, raras, eu o leio como quem vê fotos dos avós quando moços: degustando daquele sentimento de familiaridade distante, com um fundinho de curiosidade e um quê de nostalgia. Esses são dias de sol morno, dias de deitar na grama e sentir a pele solver o calor. 

 

Hoje é um dia de adeus e, portanto, um dia de reler aquele texto. E ainda que meus olhos se encham de lágrimas, minhas bochechas queimam e eu sorrio. Hoje eu não sei como eu me sinto. Talvez seja para o melhor, ou talvez seja apenas necessário, mas a verdade é que não faz diferença. Hoje é dia de eu me despedir de mim. De tudo aquilo que eu poderia ter sido e que eu fui. Dia de soltar a mão de alguém que já deseja ir-se há muito tempo. Hoje é dia de mergulhar na vazia missão de reinventar-se. Não para melhor, apenas para diferente. Desamparo, solidão, incerteza, vulnerabilidade, dúvida. São palavras que descrevem bem a névoa deste dia de morrer.  

 

Porque dessa vez meu reinventar parece uma morte, como se eu já gostasse mais de quem se foi do que de quem ficou. Desta vez a despedida não tem a leveza de deixar ir, mas o peso de querer ficar. Talvez seja porque eu não precisava ter ido de forma alguma, porque me parece que se eu houvesse mudado um pouco, cedido um pouco, aceitado um pouco, poderia ter ficado. Como se eu houvesse confundido aceitação com indiferença, ternura com sorrisos vazios, companhia com multidão.  

 

A verdade é que eu não poderia ter me amarrado a quem eu era, forçando-me a permanecer imutável. Não, isso seria bruto, irracional e inútil. Mas eu poderia ter aceitado as mudanças, permitido sua chegada e dançado através delas com calma e graça. Mas me neguei a vê-las, e assim sendo, tornei-me tão incompatível com a mutável realidade que foi preciso matar-me para continuar a existir. E assim cheguei ao dia de hoje: Dia de Despedir. 

 

Queria eu ter feito diferente, mas se pudesse voltar provavelmente cometeria os mesmos erros. Talvez pelo orgulho de ater-me à uma decisão única, mas principalmente porque na hora pareceu certo. Não propriamente certo para mim ou para aqueles relevantes para mim, mas certo como o que deve ser feito, certo como o que não pode ser de outra forma. É uma pena que eu tenha que ir, mas é justo que seja assim. Se eu voltaria a cometer os mesmos erros é mais que devido que resignação esteja presente nesta despedia. Exceto que... as vezes... concordamos com os atos, mas não com as consequências. Talvez até nem mesmo com os atos em si, mas com os motivos de fazê-los. Talvez eu seja humana de mais para ser coerente. 

 

Hoje, nesta despedida fúnebre, gostaria de ter direito a um epítáfio. Afinal, fui poeta. Na lápide de minha consciência escrevam, por favor: "poderia ter tido o mundo". 

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